EDP Saúde

28 março 2006

Texto para a próxima aula - sexta-feira, 31/03

A biologia não conhece nenhuma moral

Jürgen Habermas

Dieter E. Zimmer defendeu recentemente a idéia de que, na questão da permissão ou não para a clonagem de seres humanos, não devemos nos orientar por categorias morai como liberdade e responsabilidade, mas sim pela biologia. Uma discussão racional dos problemas da bioética exige certamente um conhecimento suficiente das discussões e fatos relevantes das ciências naturais. As questões normativas, no entanto, não podem ser tratadas adequadamente sem se considerar os pontos de vista normativos.
O próprio Zimmer manifesta-se contra a permissão da clonagem de organismos humanos com o seguinte argumento: a clonagem suspenderia o caráter casual da combinação de genes dos pais, com o que se suspenderia o mecanismo natural de variação. Graças precisamente a esse mecanismo, foi possível que até os recém-nascidos viessem ao mundo como únicos, com exceção do número, estatisticamente desprezível, dos gêmeos univitelinos. Mas, já que o ser humano como ser genérico transformou-se em um gênio da adaptação, devido unicamente a seus dotes naturais amplamente variados, Zimmer chega à seguinte conclusão: ?Se os seres humanos começassem a se clonar, infringiriam algum dos princípios aos quais devem a sua existência. Por isso, não deveriam permitir a clonagem?. Dessa consideração só se poderá tirar uma conclusão prática se lhe acrescentarmos princípios normativos.
Ou Zimmer considera que nossa capacidade de adaptação, própria da espécie, é em si um valor que deveria ser otimizado, ou mostra que a otimização de uma tal capacidade também é necessária para a conservação da espécie, sob determinadas condições da civilização. Ele complementa, então, sua constatação empírica com o preceito moral de que temos a obrigação de conservar a espécie, ou seja, temos de dar continuidade, através do processo de geração, à vida humana. Mas será que somos realmente obrigados a isso?

Quem quiser compreender Darwin deve ler Kant
A biologia não nos pode dispensar de uma reflexão de caráter moral. E a bioética não nos deveria levar a caminhos biologísticos errôneos. Por outro lado, os pontos de vista morais são controversos, especialmente na consideração moral de novos fenômenos. Isso vale também para a tentativa de abordar, com conceitos kantianos, as possíveis conseqüências da clonagem de organismos humanos.
Parto da idéia de que os princípios de um ordenamento jurídico igualitário só permitem as competências de decisão que são compatíveis com o respeito recíproco de igual autonomia de cada um dos cidadãos. Assim, por exemplo, uma outra pessoa só poderá dispor, limitadamente, de minha força de trabalho, temporal e objetivamente, se eu lhe der meu consentimento.
Certamente há relações especiais de poder, como aquela entre pais e filhos. Mas, prescindindo de que também o poder dos pais é juridicamente restrito, para a questão acerca de se a clonagem de humanos interviria na simetria fundamental das relações recíprocas entre pessoas com direitos livres e iguais, basta considerar a relação entre adultos ou, em sentido jurídico, maiores de idade. A vida de uma pessoa está marcada, tanto pelo seu contexto de socialização, como por sua herança genética. Tratam-se, porem, de elementos de natureza diversa: um jovem pode, por exemplo, sair da casa dos pais e romper com as tradições desses; permanecerá, porém, sempre submetido a seus próprios genes.

Um ser humano clonado tem outra compreensão de si?
O que mudaria na autocompreensão moral de uma pessoa adulta caso não tivesse sido gerada naturalmente e sim clonada? Evidentemente isso em nada mudaria sua dependência de um código genético. O que muda, no entanto, é o fato de que ela passa a depender do estabelecimento desse código por uma outra pessoa. Quando os pais decidem gerar um filho, esse se torna herdeiro de um contexto genealógico complexo devido à combinação, regida pelo acaso, dos genes de ambas as partes.
Zimmer acentua, com razão, a diferença entre essa decisão e a de uma pessoa que deixa produzir uma cópia, o mais exata possível, de seu código genético. Isso fundamentaria uma espécie de relação interpessoal, até agora desconhecido, entre original e cópia genética. Efetivamente, a determinação intencional da substância hereditária significa que, para o clone, se perpetua uma sentença decretada sobre ele por outra pessoa antes de seu nascimento. Se as conotações da metáfora do tribunal não agradam, pode dizer-se, com Lutz Wingert, que aqui se encontra uma relação interpessoal semelhante à do designer com seu produto.
Seja como for, surge um problema para os dois lados: do lado do genitor, o problema moral de uma duplicação autocrática e narcisista de si mesmo, isto é, de sua própria disposição genética; do lado do gerado, o problema de uma intervenção numa zona que, do contrário, nunca estaria à disposição de outros.
A pessoa clonada teria, sem dúvida, como todas as demais, a liberdade de fazer uso de suas capacidades e limitações e de encontrar, a partir disso, respostas produtivas para si mesma. No entanto, para o clone, essas ?circunstâncias do nascimento? já não mais seriam condições causais, mas o resultado de uma ação intencional. O que para outros é um acontecimento contingente, pode, no caso do clone, ser imputado a outrem. A imputabilidade da intervenção intencional em uma zona de indisponibilidade constitui, agora, a grande diferença sob os pontos de vista moral e jurídico.
A expressão ?indisponível? quer significar apenas que a intervenção de outras pessoas, com as quais ? sob o ponto de vista normativo ? somos iguais, está excluída. Pertence, sem dúvida, à concepção moderna da liberdade de ação o fato de que as condições da formação da identidade pessoal são indisponíveis. Por outro lado, põe-se em questão o reconhecimento recíproco da mesma liberdade para todos. o clone sabe que, não só por casualidade, mas também por princípio, não pode determinar seu genitor da mesma forma que esse pode determinar aquele.
Contra isso se pode objetar que tampouco as crianças geradas por seus pais podem gerá-los. Mas essa assimetria se refere essencialmente à circunstância de que a criança veio ao mundo, isto é, ao mero fato de sua existência; isso nada tem a ver com a forma, segundo a qual essa criança conduzirá sua existência com base num núcleo herdado de capacidades e propriedades.
Não tenho clareza acerca da forma como essa mudança de perspectiva poderia influenciar na nossa autocompreensão moral. Tanto quanto vejo, a clonagem de seres humanos lesaria a condição de simetria na relação entre pessoas adultas, sobre a qual, até agora, se assenta a idéia do respeito recíproco de liberdades iguais.
Essa reserva não se estende, no entanto, com afirma Zimmer, a qualquer tipo de intervenções terapêuticas no organismo de alguém dependente, que não é consultado, nem sequer com respeito à eliminação preventiva de doenças (algo que nunca poderia ser prescrito, mas apenas permitido). No entanto, para a justificação normativa de tais intervenções pré-natais, só vejo argumentos negativos, isto é: evitar males. Provavelmente essa própria formulação é demasiado fraca, posto que a definição dos males depende de critérios culturais, que podem ser muito problemáticos. Já não houve, por acaso, épocas nas quais ?raças inferiores? foram consideradas como um mal?Não tenho a impressão de que já tenhamos encontrado as respostas corretas às questões morais e jurídicas da tecnologia genética e da medicina da reprodução. Mas algo é certo: elas não nos serão fornecidas pela biologia.
Artigo publicado originalmente na revista Die Zeit.Traduzido do alemão por Draiton G. de Souza, professor do Departamento de Filosofia da PUCRS.

Fonte: ZERO HORA. Caderno de Cultura. 29 de dezembro de 2001, p. 4-5